quarta-feira, 17 de novembro de 2010

OS DILEMAS DE JOSNELSON - PARTE 7

Espelho, espelho meu, porque não enfrentou teus dilemas como eu?!

            Começava mais um ano letivo e as coisas iam muito bem, apesar de ter sido reprovado no ano anterior. O pouco receio que tive de que poderia acontecer comigo tudo novamente passou ao chegar à sala de aula e sentir o mesmo clima de receptividade do ano anterior. Já me sentia um veterano na escola e para “melhorar” a situação grande parte da turma também reprovou, incluindo o meu “irmão mais velho” (ler parte 6), e todos ficamos na mesma sala.
            Duas vezes por semana tínhamos aula de educação física pela manhã, sendo que estudávamos à tarde. A aula era coletiva entre os alunos de cinco turmas, duas quintas séries, uma sexta, uma sétima e uma oitava. Todos tinham aula com a mesma professora no mesmo horário, o que proporcionava conhecer os colegas de outras turmas. Esta situação possibilitou acontecer uma das experiências mais marcantes da minha vida.
            Era uma manhã de sol com uma leve brisa naquela terça-feira. Eu estava atrasado e caminhava apressadamente em direção ao campo de futebol onde acontecia a chamada no início das aulas. Como a chamada já havia sido feita o pessoal já procurava algo para fazer, no caso dos guris, estavam escolhendo os times para jogar futebol. No meio de toda essa função percebi um guri, com minha idade mais ou menos, sentado num canto do pátio longe de todos, mas na pressa passei batido por ele e fui responder a chamada para poder jogar futebol com o bando. O jogo acabou e reparei que o menino ainda continuava sentado no mesmo local onde o vi anteriormente. Peguei minha mochila com as roupas de jogo e fui embora almoçar para depois voltar à escola. Naquela tarde percebi que o guri fazia parte da nossa turma de educação física porque o vi entrar na outra quinta série que tinha no mesmo andar que a minha.
            Na aula de educação física seguinte observei a mesma situação envolvendo o menino triste e isolado num canto do pátio. Lembrei das inúmeras vezes que havia passado pela mesma situação e decidi ir conversar com ele. O nome dele era Carlos Malaquias Júnior, mas a família lhe chamava carinhosamente de Caju. Esse primeiro contato foi muito esclarecedor e surpreendente porque descobri que tínhamos muitas coisas em comum. Nossa idade era a mesma e entramos no mesmo ano para a escola. Caju me falou que sempre teve facilidade para aprender os conteúdos e que isso lhe causava alguns incômodos. No ano anterior decidiu agir diferente para ver se alguma coisa mudava no seu dia-a-dia solitário na escola que estudava e o máximo que conseguiu foi ser reprovado e por consequência o trocaram de escola. Seus pais não gostaram nada da repetência e decidiram “puni-lo” o colocando numa escola pública com a justificativa de que se não dava valor para escola “boa” agora ele iria aprender a dar valor estudando na escola pública. O motivo não era dinheiro porque eles tinham muita grana para gastar com muitas coisas, inclusive com escolas particulares para seu filho.
            A partir daquele dia conversava diariamente com Caju e ao mesmo tempo tentava inseri-lo no grupo, mas como estudávamos em turmas diferentes durante a tarde ficava complicado ajudá-lo em sala de aula. Nas aulas de educação física já o incluía no time de futebol, o que foi um grande avanço. Caju tentava ao máximo não surpreender muito com sua sagacidade e inteligência durante as aulas com a finalidade de chamar o menos possível a atenção dos colegas prevendo que se isso acontecesse começaria tudo novamente com a mesma intensidade de antes e ele voltaria a ser o monstrinho da sala com todos seus predicados. Porém, ele colocava tudo a perder quando tinha “ataques súbitos” de nerd, até então não entendia o porquê, mas continuava se esforçando ao máximo para socializar com a galera.
            Um outro agravante que dificultava as relações sociais de Caju era que ele tinha a pinta do legitimo mauricinho que pouquíssimas vezes havia se relacionado com o povão, os pobres. Era como se tivesse caído de pára-quedas na escola estadual. Caju queria muito fazer parte de algo, de um grupo, ter amigos, mas ao mesmo tempo não queria trair a confiança do único grupo a qual pertencia que era a sua família. Assim como eu, Caju não conseguia fazer as duas coisas simultaneamente, a diferença é que eu fiz minha escolha (ter amigos) e arquei com as conseqüências (reprovação), e ele não saia de cima do muro e ainda jogava para os dois times, hora agia de forma a fazer amigos, hora agia como seus pais queriam e tinha seus lapsos de nerd para passar de ano. Este tipo de comportamento se mostrava muito destrutivo e Caju sabia que não era o ideal, mesmo assim não tinha condições de resolver essas questões sozinho e sofria com isso. 
            Ele me confidenciava que não queria trair mais a confiança dos pais e por isso precisava da sua porção nerd para lhe ajudar nessa empreitada, isso lhe gerava muitos debates internos sendo que uma parte do seu eu apoiava a atitude e outra não. Identificava-me muito com ele em diversas situações, mas essa sempre foi a que mais conversávamos a respeito, pois também estava com a confiança dos meus pais em mim muito fragilizada por ter mentido que ia bem na escola e acabei rodando no ano anterior. A diferença entre eu e Caju é que eu costumava lidar com a situação de uma forma mais amena que ele. Quando ele tocava no assunto era visível sua ansiedade, pois achava que estava agindo errado em determinadas situações e isso não o ajudava a resolver seus problemas. Tentava o confortar falando das minhas situações desgastantes e procurava mostrar que com um pouco de paciência e boa vontade as coisas iriam se encaixando. Caju frisava muito que tinha sido reprovado no ano anterior e que por conta disso iria atrasar a conclusão de seus estudos e isso era imperdoável. Sempre procurei mostrar que também passava por situação semelhante e que nós iríamos vencer os obstáculos.
            Refletia muito a respeito e chegava a conclusão que Caju não merecia passar por esses dilemas. Ele era uma pessoa maravilhosa que eu gostaria de ter conhecido nos meus momentos de amarguras escolares em anos passados. Era o legítimo parceirão que sempre estava pronto para o que fosse proposto. Falava num tom calmo e pausado, dificilmente o ouvia falando mal de alguém. Sempre muito introspectivo, parecia que guerreava, à sua maneira calma, com seus pensamentos. Tinha ideias  muito diferentes e consideradas por muitos como inovadoras, e sabe como é, tudo que é novo e/ou diferente sempre acaba causando estranheza e espanto nas pessoas e também acaba sendo menosprezado ou ridicularizado por alguns. Mesmo percebendo que surgiam comentários maldosos durante suas explanações, ele mantinha a mesma postura calma e concluía seu raciocínio. Como me referi no inicio do parágrafo, era triste ver alguém tão especial passar por situações desta natureza.
            O tempo foi passando e as férias de inverno chegaram. No último dia de aula conversei com Caju normalmente e nos despedimos. Pedi o telefone da sua casa (naquele tempo celular era muito raro) para mantermos contato durante as férias, mas ele não me deu alegando que seus pais não iriam gostar. Ele ainda estava descontente porque não havia decidido o que fazer em relação a seu bem estar. Eu ainda era seu único amigo e suas notas não eram “boas” na tentativa de fazer novos amigos. Leia-se boas notas entre nove e meio dez, que eram as notas que seus pais queriam que ele tirasse, afinal ele estava numa escola pública e era sua obrigação passar de ano com essa média. Os lampejos nerd que ele tinha o faziam beirar os oito pontos, oito e meio, o que já era uma das mais altas notas da sua sala de aula. Mas como já falei, não era suficiente para seus pais. Caju foi para as férias muito frustrado porque mesmo agindo dessa forma não havia feito amigos como queria e essa frustração era evidente para quem tivesse um contato mais próximo a ele.


A exclusão derradeira

            Ao retornar das férias reparei que Caju não foi à aula no primeiro dia. Até então não me preocupei, mas depois de toda semana sem notícias do cara fiquei chateado. Me perguntava o que será que tinha acontecido com o meu bruxo. Ninguém tinha informação para dar haja vista que, como já é de conhecimento de todos, ele não tinha amigos a não ser eu. Fiquei muito puto por não ter forçado a barra, sei lá, pego o caderno dele no último dia de aula e anotado o numero do telefone dele. Mas não, nem sabia o que fazer para conseguir informações acerca do sumiço do cara.
            Já havia passado um mês e nada do guri aparecer. Perguntava para os colegas dele se alguém surgiu com alguma notícia e els me respondiam:
            - Caju? Quem é Caju?
Na diretoria me falavam que não podiam dar informações pessoais dos alunos para ninguém. Os professores não sabiam de nada e os alunos muito menos. Foi então que surgiu um boato por parte de um primo do filho da ex-empregada da família de Caju que estudava na escola. O boato dava conta de que Caju havia falecido de forma desconhecida. Como acontece no “ramo da boataria” não consegui encontrar o tal guri que surgiu com o assunto e até hoje nunca soube certamente o que houve com o meu amigo Caju
            Por isso prefiro pensar que ele viajou para um local onde possa ter a tranqüilidade de falar e fazer o que quiser da forma que quiser sem a interferência de algo e/ou de alguém. Um lugar onde seus frenéticos pensamentos repousem e que a culpa seja barrada na fronteira. Onde amigos que ele nem imaginava ter o recebam na estação e façam todas as coisas de amigo que ele um dia sonhou em compartilhar. Um lugar onde o tempo (se lá existir isso) é seu aliado e que as coisas conspirem a seu favor, mesmo sem precisar de boas notas. E o mais importante, que durante a viagem ele encontre esse lugar.
             
            Rezo desde meus dez anos para que meu inesquecível amigo Caju tenha encontrado esse lugar e esteja aproveitando e usufruindo das coisas que lhe foram privadas ou controladas aqui, tais como tranqüilidade e muita paz interior!





 Por João Gonçalves Neto


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Um comentário:

João Gonçalves Neto disse...

Este texto sempre me deixa diferente. Pode passar o tempo qwue for! Paz e Luz meu IRMÃO!